TRC no Mundo

dezembro 28, 2023 0 Por Site Fetransul

Crise no setor de transporte rodoviário de cargas no Japão

O setor de transporte rodoviário de cargas no Japão é uma engrenagem essencial nessa que é uma das maiores economias do mundo, além de ser a força vital da cultura de ultracomodidade japonesa. Mas o setor como um todo, e seus motoristas, estão sendo fortemente pressionados. A fim de melhorar as condições de trabalho e tornar a atividade profissional mais atrativa, o governo está prestes a, pela primeira vez, limitar a quantidade de horas extras no próximo ano, diminuindo as jornadas de trabalho inclementes características do setor no país.

A solução desse problema, contudo, criará outros – causando um entrave em todo o sistema logístico do país. É improvável que se consiga contratar motoristas para compensar essa perda de horas extras de forma rápida. Essa escassez de profissionais poderá provocar desabastecimento de certos itens em supermercados e ameaçar entregas rápidas de porta a porta – bagagens em aeroportos ou de tacos de golfe em resorts, por exemplo –, comodidades a que os japoneses estão acostumados. Especialistas estão chamando essa situação de “problema de 2024”.

Daiki Funamizu, à direita, carrega caixas com Tetsuya Mikami em uma de suas paradas. Uma vez que as caixas não são padronizadas, a carga deve ser carregada e descarregada manualmente. Acima, na página anterior, caminhões tarde da noite em Tóquio.

“Acredito que teremos um problema complexo e difícil”, afirma Mikio Tasaka, pesquisador do Instituto de Pesquisa e Consultoria em Logística NX, referência na área em Tóquio.

O governo está sendo levado a tomar certas medidas em razão da pressão feita por trabalhadores de diversos setores contra a cultura do trabalho exaustivo no Japão, que praticamente não deixa espaço para que haja um equilíbrio entre vida profissional e vida pessoal, e que, inclusive, chegou a provocar mortes por excesso de trabalho.

As horas extras também serão limitadas para trabalhadores da construção civil, médicos e motoristas de ônibus e táxis, que, assim como os caminhoneiros, costumam ter jornadas longas em decorrência da falta de profissionais em um país com 130 vagas para cada 100 candidatos a um emprego.

Esses setores também estão se preparando para um choque, mas o desafio será especialmente grave para o setor de transporte rodoviário de cargas.

Mais de 90% das cargas no Japão viajam por rodovias, comparadas a, mais ou menos, 73% nos Estados Unidos. Com a eliminação de horas extras, analistas estimam um déficit de 14% na capacidade de entregas no próximo ano.

Alguns motoristas fazem 100 ou mais horas extras por mês, seja porque o trabalho assim exige ou porque precisam ganhar mais. No entanto, a partir de abril do ano que vem, essas horas extras ficarão limitadas a uma média mensal de 80 horas ou a um limite diário de 15 horas.

Até o fim da década, de acordo com estimativas do governo, um terço das cargas no Japão poderá ficar sem entrega, resultando em um impacto econômico da ordem de US$ 70 bilhões em 2030. Tasaka, pesquisador em logística, alerta que esses impactos poderão causar “uma espécie de recessão”.

Antes mesmo de o limite de horas extras entrar em vigor, os efeitos da escassez de motoristas têm sido amplamente percebidos.

“A padronização no setor de logística está muito atrasada.”

Yuji Yano, que estuda sistemas de entregas na Universidade Ryutsu Keizai.

Lojas de conveniência estão reduzindo entregas de refeições de três para duas vezes ao dia. Redes de supermercados estão pedindo um dia a mais em suas entregas e evitando envios noturnos. Também estão tentando compartilhar centros de distribuição e padronizar o tamanho de caixas sob orientação do governo.

Depois que as novas regras de horas extras entrarem em vigor, entregas com prazo de um ou dois dias poderão não ser mais possíveis, dizem os economistas. Poderá haver redução na disponibilidade de peixes e frutos do mar frescos e de frutas e legumes em mercados. Custos de envio poderão ter um aumento de 10%. Fretes poderão ficar indisponíveis durante períodos de pico, como Natal e Ano Novo.

Em Aomori, município japonês localizado no norte do país e famoso por suas maçãs, os agricultores estão preocupados com a redução da demanda decorrente de entregas atrasadas e do aumento dos custos dos fretes. “Sem caminhoneiros, não podemos transportar”, relata Shoji Naraki, 55 anos, produtor de maçãs em Aomori.

Além da falta de mão de obra, o setor de transporte rodoviário de cargas sofre em razão de práticas antiquadas de pessoas de outros pontos da cadeia, como fornecedores e varejistas. E isso torna difícil encontrar meios de aumentar a produtividade.

“Não é fácil fazer mudanças radicais neste setor”, afirma Haruhiko Hoshino, membro da associação que representa o setor de transporte rodoviário de cargas no Japão ao mencionar a natureza interdependente do setor.

Os caminhões japoneses não têm reboques removíveis, diferentemente do que ocorre na maior parte do mundo desenvolvido. As caixas não são padronizadas – há 400 tamanhos diferentes de embalagens para o transporte de laranjas, por exemplo.

Acima, na página anterior, Daiki Funamizu verifica documentos em Aomori antes de transportar uma carga de maçãs. Abaixo, à direita, Rikako Naraki e seu irmão, Shoji, em sua fazenda em Aomori. Abaixo, à esquerda, motoristas de ônibus também serão afetados pela regulamentação de horas extras.

Da esquerda para a direita, Funamizu dirige em Aomori para carregar maçãs; Funamizu, à direita, e um colega de trabalho conferem a rota do dia com o chefe, Koji Kawaguchi, à esquerda; cabine do caminhão de Funamizu, que conta com um espaço para dormir e está cheia de seus pertences.

“A padronização no setor de logística está muito atrasada no Japão”, disse Yuji Yano, que estuda sistemas de entregas na Universidade Ryutsu Keizai. “Os tamanhos dos pallets não são padronizados. Fabricantes e atacadistas não usam sistemas de compartilhamento de dados padronizados”.

A falta de uniformidade faz com que a carga tenha que ser carregada e descarregada manualmente – trabalho feito por empilhadeiras em outros países, mas realizado por caminhoneiros no Japão, que frequentemente não são remunerados por esse trabalho por ausência de previsão contratual, segundo especialistas.

Em Aomori, essas práticas profundamente enraizadas geram uma fila de caminhoneiros que precisam esperar horas até a sua vez de adentrar o pátio de carregamento de maçãs.

“Os motoristas trabalham demais”, aponta Funamizu, caminhoneiro que recentemente fez uma viagem de Aomori a Osaka. “Não acho que o sistema de distribuição vá mudar no Japão – está fora do nosso controle”.

O governo japonês propôs uma série de mudanças paliativas para aliviar o impacto no setor de transporte rodoviário de cargas.

Agentes do governo pediram para que os embarcadores paguem valores justos às empresas de transporte rodoviário de cargas. Recomendaram que os mesmos criem processos mais eficientes de modo a reduzir o tempo de espera dos motoristas para carga e descarga dos caminhões. Pediram para que os embarcadores utilizem com mais frequência meios de transporte alternativos, como trens e navios. E também estão considerando aumentar os limites de velocidade dos caminhões de 80 para 100 km/h em rodovias.

O primeiro-ministro Fumio Kishida disse que trabalhará para aumentar os salários dos caminhoneiros, prometeu subsídios para que as empresas de logística atualizem seus sistemas, e recomendou que moradores fiquem em casa quando houver entregas agendadas, evidenciando a necessidade de reduzir tentativas de entrega que atrasam os motoristas.

“Não acho que o sistema de distribuição vá mudar no Japão – está fora do nosso controle”. Daiki Funamizu, caminhoneiro.

Empresas do setor de transporte rodoviário de cargas também estão considerando algumas mudanças, como a permissão para que estrangeiros se tornem motoristas de caminhão. (Há, no momento, 200 vagas abertas para cada 100 candidatos à função de caminhoneiro.) Mas, no Japão, a carteira de habilitação exige proficiência em japonês, uma habilidade pouco provável entre os estrangeiros.

Alguns motoristas, mesmo lamentando as condições de trabalho, afirmam que são contra os limites de horas extras. Eles temem reduções de salários pois pode ser difícil aumentar o valor pago aos motoristas e compensar a perda de rendimentos pela diminuição das horas extras se os consumidores resistirem ao aumento dos custos dos fretes.

Tomoyasu Matsuyama, 31 anos, que ganha em torno de US$ 3.060 por mês fazendo entregas de frutas e legumes, diz que espera uma redução de US$ 600 em seu salário após a implementação dos limites de horas extras.

As empresas de transporte também estão sendo pressionadas pela alta dos preços dos combustíveis e dos custos de manutenção de seus veículos, informa Hiroyuki Utsunomiya, 74 anos, presidente de uma empresa de transporte no município de Miyagi. “Quando as normas se acirrarem, em 2024, será mais difícil fechar negócios”, comenta.

Em Aomori, o prefeito pediu ao governo que relaxasse as regras para os caminhoneiros no município.

Contudo, o ministro dos Transportes do Japão parece firme em relação aos novos limites de horas extras, que vêm sendo adiados há cinco anos.

“Não vamos, de maneira alguma, adiar a implementação da norma”, afirma Yudai Furukawa, vice-diretor de Políticas de Logística do ministério. “Não há nada mais precioso que as vidas das pessoas”. Hisako Ueno, de Tóquio, e John Yoon, de Seul.

Abaixo, à esquerda, descarregando bonito no Mercado de Peixe Kesennuma, no município de Miyagi. Abaixo, à direita, Tomoyasu Matsuyama, motorista, carregando frutas em um mercado de Tóquio. Ele ganha cerca de US$ 3.060 por mês, mas espera perder US$ 600 com as novas regras de horas extras.

Hisako Ueno e John Yoon

Fotografias de Hiroko Masuike / The New York Times

Fonte: The New York Times